Violência: Brasil mata 82 jovens por dia (17/5/2015)

Eles foram vítimas de 30 mil assassinatos em 2012; do total de mortes, 77% eram negros, o que denuncia um genocídio silenciado de jovens negros, afirma Atila Roque, da Anistia Internacional
         Silhuetas de corpos desenhadas no Rio de Janeiro alertam para assassinatos de jovens negros

Matou-se mais no Brasil do que nas doze maiores zonas de guerra do mundo. os dados são da Anistia Internacional no Brasil e elevam em conta o período entre 2004 e 2007, quando 192 mil brasileiros foram mortos, contra 170 mil espalhados em países como Iraque, Sudão e afeganistão.
Os números surpreendem e são um reflexo de uma "cultura de violência marcada pelo desejo de vingar a sociedade", conta Atila Roque, diretor-executivo da base brasileira da Anistia Internacional. De acordo com os últimos levantamentos feitos pelo grupo, 56 mil pessoas foram assassinadas em solo brasileiro em 2012, sendo 30 mil jovens e, entre eles, 77% negros.
Esses índices, segundo ele, são resultado de uma política de criminalização da pobreza e de uma indiferença da sociedade em torno de um "genocídio silenciado" que muitas vezes fica impune. "Entre 5 e 8% dos homicídios no Brasil chegam a virar processo criminal. Então, na verdade, matar no Brasil virou um crime quase que impune", afirma Roque. "Ou seja, processos sobre os homicídios também são seletivos."
Do outro lado desse processo, o racismo introjetado nos profissionais de segurança pública explica a alta mortandade da população negra. Para Roque, esses policiais são vítimas do mesmo preconceito que reproduzem. "Essa sociedade que constrói uma visão estereotipada sobre sua população, em particular a jovem negra de periferia, vê o policial como parte desses cidadãos de segunda classe", argumenta.
CartaCapital conversou com o diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil sobre a campanha "Jovem Negro Vivo", cujo objetivo é sensibilizar a sociedade para o tema da violência direcionada aos jovens, em especial negros, no Brasil.

CartaCapital: O Mapa da Violência de 2014 da Unesco mostra que há uma queda de 32,3% no número de homicídios de jovens brancos, enquanto o percentual de homicídios de jovens negros cresceu na mesma proporção, com um aumento de 32,4%. O que isso indica?
Atila Roque: Essa é uma tendência não só de 2014. Se olharmos os dados dos últimos dez anos, é certamente isso que você vai encontrar. Entre jovens brancos, com idade entre 16 a 29 anos, há uma redução na taxa de homicídio da ordem de 33%. Quando considerarmos os homicídios de jovens negros, na mesma faixa de idade, é como se olhássemos para um espelho invertido. A partir disso, quando olhamos a linha de crescimento de homicídios no Brasil, a conclusão imediata é que o crescimento das mortes está muito sustentado na morte do jovem negro.
Se a tendência de redução que encontramos nas mortes de jovens brancos prevalecesse, estaríamos em um processo de redução das taxas de homicídio, o que não está acontecendo. Estamos há mais de dez anos na faixa de 50 mil homicídios por ano, o que é um número absolutamente espantoso, mesmo comparando com situações de guerra e conflitos.
Isso também sugere que a sociedade brasileira está claramente admitindo que não se importa, pelo silêncio e pela indiferença. Está dizendo que o jovem negro pode morrer e que há um tipo de pessoa que é “matável”. Isso tem muito dos nossos preconceitos e dos estereótipos que formam a visão do Estado e da sociedade em relação a seus cidadãos.

CartaCapital: A sociedade não se importa ou não sabe?
Atila Roque: Não saber é relativo. Primeiro porque esses dados existem pelo menos desde 1981. Então, a sociedade como um todo, e isso inclui os órgãos de imprensa e as entidades estatais responsáveis por políticas públicas, não pode alegar desconhecimento. Essa série de dados que é proveniente do registro do Sistema Único de Saúde já vem sendo feita há 30 anos. Por isso conseguimos traçar tantas tendências e fazer paralelos. O Brasil tem os dados. O problema é em que medida esses dados são apresentados à população e com que dramaticidade. A verdade é que, se analisarmos, com raríssimas exceções, a cobertura que a grande imprensa dá, notamos um grande silenciamento. Isso raramente chega até as manchetes dos jornais.

CartaCapital: Diferentemente de outros países...
Atila Roque: A barbaridade do caso Ferguson, por exemplo, causou um escândalo nos Estados Unidos e no Brasil também. Alguns jornais brasileiros deram quatro páginas para o caso. Por outro lado, há três semanas, tivemos um episódio em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, em que cinco jovens foram executados em uma esquina. Isso gerou um pedaço de notícia minúsculo.
Não quero culpar a imprensa, isso faz parte de uma situação complexa em que a imprensa responde às prioridades da sociedade, o que sugere que a sociedade não está mesmo prestando atenção para esse tipo de caso. Assim, temos um ciclo vicioso. O dado sai naturalizado. É como se as pessoas dissessem “puxa, que pena, mas eles tinham que morrer mesmo”.

CartaCapital: Por que espanta quando a notícia é Ferguson e não espanta se acontece em Duque de Caxias?
Atila Roque: Porque em Ferguson a reação da sociedade foi de outra ordem, saiu às ruas, indignou o país. Em Duque de Caxias, a notícia fica na cidade. Essa tem sido, infelizmente, a dura rotina de quem é vítima da violência. Existe um olhar da sociedade sobre o jovem negro, morador da periferia, que é “ele vai morrer, ele vai entrar no crime, ele vai se envolver em situação de conflito”, então, quando acontece, é como se o destino já estivesse traçado. E, na verdade, não está. O destino desse jovem é viver e não morrer.

CartaCapital: Existe algum levantamento da polícia que tipifica o tipo de crime pelo qual esses jovens negros, que estão sendo mortos, respondem?
Atila Roque: Eu não conheço esse dado, mas o que eu posso dizer é que existe um índice muito alto de prisões por crime contra a propriedade – roubo, assalto, e delitos pequenos em comparação com crimes letais – e tráfico de drogas. A gente sabe que o Brasil pune o peixe pequeno e o usuário pobre e morador de periferia. Estes são enquadrados como traficantes, enquanto os grandes traficantes, às vezes, são enquadrados como usuários. O Brasil prende muito.
Assim como a violência é seletiva, a Justiça também é e a impunidade é mais ainda. Desde a República Velha há o dizer: “Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”. De certa maneira é isso o que acontece no sistema de justiça no Brasil. Como pode-se falar em impunidade se temos a quarta maior população prisional do mundo? É um espanto. Prende-se quem, por quê?
Ao mesmo tempo, entre 5 e 8% dos homicídios no Brasil chegam a virar processo criminal. Então, na verdade, matar no Brasil virou um crime quase que impune. Só vira inquérito quando é quase em flagrante, ou seja, quando o crime é passional ou de trânsito, aquele crime que todo mundo viu. Ou seja, processos sobre os homicídios também são seletivos.

CartaCapital: O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo e o País é conhecido por não conseguir recuperar os seus presos e reinseri-los na sociedade. Partindo desse princípio, qual é o futuro de um jovem negro que vai preso, hoje, no Brasil?
Atila Roque: Hoje, infelizmente, com a exceção daqueles que conseguem nadar contra a corrente, por força pessoal ou pelo apoio familiar, a chance é a pessoa sair mais desacreditada em relação à sociedade e pior. O sistema piora as pessoas. A maior parte das pessoas vai presa sem ter cometido um crime violento, ou seja, sem histórico de violência ou vínculo com o crime organizado. Ao entrar na prisão, ele é submetido à violência do sistema prisional, ao controle das prisões pelas facções criminosas e é empurrado a aprofundar seu envolvimento com o crime. E, além de tudo, o jovem sai do sistema com o estigma de quem foi preso.
A lei de execução penal, embora bastante razoável, não é aplicada no Brasil. Não se opta por penas alternativas porque ainda temos uma cultura muito marcada pela vontade de vingar a sociedade. Além disso, 40% da população carcerária está em prisão provisória, ou seja, nem sequer passaram por um julgamento. A maioria dessas pessoas seria submetida a penas de trabalho comunitário ou seria inocentada, sem a necessidade de ter sido presa. Isso mostra o grau de injustiça e perversidade contido no sistema.

CartaCapital: É possível mensurar o número de morte de jovens cometidas pelo Estado?
Atila Roque: Estamos bastante mal na coleta de dados de letalidade provocada pelo Estado. Nós sabemos muito pouco sobre quem foi morto pela polícia. A coleta é imperfeita. A maior parte dos estados não coleta, coleta mal ou não divulga. Isso no País que tem uma das polícias que mais matam no mundo. E, para fazer justiça, é uma das polícias que mais morrem também.

CartaCapital: É justo afirmar que as instituições policiais brasileiras apresentam um racismo crônico e que existe deficiência na formação policial?
Atila Roque: Eu acho justíssimo. Vejo os profissionais de segurança como vítimas dessa máquina de matar. Eles são profissionais que não são reconhecidos pela sociedade, a sociedade olha para eles como aqueles que fazem o serviço sujo. Essa sociedade que constrói uma visão estereotipada sobre sua população, em particular a jovem negra de periferia, vê o policial como parte desses cidadãos de segunda classe. Eles são mal pagos, mal treinados, mal equipados.
Eles não têm apoio psicológico ou de saúde. Suas famílias ficam quase desamparadas quando um deles morre. Eles são vítimas. São, em sua maioria, jovens e, no caso da Polícia Militar, negros. E pagam o preço por estarem na ponta do sistema, quando a verdade é que são vítimas também.
Uma pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas com o Fórum de Segurança Pública, há dois anos, mostra que ninguém deseja mais a reforma do sistema de segurança do que o próprio policial. Ele é a favor da desmilitarização, ele se manifesta a favor da reforma da polícia, ele está insatisfeito por não ter uma carreira única.
Temos um sistema caótico e devemos revisitá-lo sob a perspectiva de que segurança pública é um direito de todos. O profissional de segurança pública deveria ser considerado pela sociedade tão ou mais importante quanto um médico, porque é ele quem tem o monopólio da violência para proteger os outros.

CartaCapital: Com exceção de 2014, que foi um ano de desaceleração econômica, o Brasil tem vivido um ciclo de crescimento e maior inclusão social, no qual o jovem pobre tem um acesso ampliado ao Ensino Superior e goza de um processo de maior distribuição de renda. Diante disso, por que o número de homicídios entre pobres e negros não cai?
Atila Roque: Esse talvez seja o maior paradoxo que estamos vivendo enquanto sociedade. Isso desmente o que se dizia no passado que é: basta resolver a questão social e promover inclusão que a violência automaticamente vai diminuir. O que estamos vendo no Brasil é que a dinâmica da desigualdade, da distribuição dos bens e da violência obedece a outros critérios que não são apenas a inclusão. É claro que a inclusão é um fator importantíssimo, mas provavelmente o que estamos assistindo é que a mesma família que se beneficia da inclusão também paga o preço entre os seus.
A conclusão que os estudos têm demonstrado é que, se não priorizarmos uma política inclusiva e responsável de política pública, junto com uma política de redução da desigualdade, não é possível reverter essa situação.
A dinâmica da violência está associada aos problemas históricos do campo da política de segurança no Brasil. Temos uma tradição de criminalização da pobreza, de definição de guerra ao jovem pobre, que só foi agravada com a ditadura militar e que não foi alterada de forma substantiva com a democracia.

CartaCapital: Existe uma estimativa do número de jovens que morrem no Brasil por dia?
Atila Roque: Algo em torno de 82 jovens entre 16 e 29 anos a cada 24 horas. Isso não estar nas páginas dos jornais é algo espantoso. Para que se tenha uma ideia do que significa, imagine que a cada dois dias caia um avião cheio de jovens. Entre eles, 93% são do sexo masculino e 77% são negros. E a sociedade não dá uma só notícia. Na verdade, esse deveria ser o único assunto. Nós não devíamos falar de mais nada no Brasil. É uma tragédia de proporções escandalosas.

CartaCapital: O Estatuto do Desarmamento está para ser revisto em uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados. Na sua opinião, a revisão do Estatuto influenciaria nesse número de mortos?
Atila Roque: No caminho que está tomando, sem dúvida nenhuma. Mais de 90% das 56 mil mortes são causadas por armas de fogo. É muito fácil colocar a mão em um revólver no Brasil. Essas pessoas todas estão morrendo com armas de fogo de muito fácil acesso, não estamos falando de armas altamente sofisticadas como o noticiário sugere. Ao se pensar que essa legislação corre o risco de ser ainda mais flexibilizada, isso se torna uma coisa inclassificável do ponto de vista de uma sociedade que valoriza a vida. É uma loucura.

CartaCapital: E o que fazer para alterar esse cenário de genocídio não divulgado entre os jovens?
Atila Roque: A Anistia Internacional no Brasil lançou uma campanha chamada “jovem negro vivo”. Nós tomamos essa decisão porque poucos temas na área dos Direitos Humanos, da democracia e da cidadania tem tanta importância quanto essa situação de quase extermínio cotidiano que a população jovem, em especial jovem negra, está vivendo. Acreditamos que o Brasil precisa fazer com a questão dos homicídios de jovens a mesma coisa que fez com a fome.
Hoje, o Brasil saiu do mapa da fome. Houve uma mudança concreta no momento em que a sociedade despertou para esse problema e colocou isso na sua lista de mais altas prioridades. A Anistia está convidando para a mobilização, para que a sociedade brasileira coloque a questão dos homicídios de jovens, em especial os negros, como prioridade e retire o Brasil do mapa de homicídios. O manifesto já está no site. Esperamos que em cinco anos, ou até menos, nós possamos acordar e dizer que nós, como sociedade, tomamos a decisão de romper o pacto de silêncio e acabar com essa epidemia da indiferença que está matando tantos jovens.

Créditos: CartaCapital 
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